Obrigação do fornecedor na reposição de peças durante a vida útil do produto: Uma conquista do consumidor
Gustavo Oliveira Chalfun e Cinthia da Silva Pereira
Quando da ausência de peças e componentes do produto dentro da vida útil do bem, pode ser o fornecedor obrigado a substituí-lo ou indenizar, de modo inibir a compra de outro produto por impossibilidade de reparo, à custa do consumidor.
sexta-feira, 8 de maio de 2020
O Código de Defesa do Consumidor foi criado pela lei
8.078/90 para dar proteção e segurança ao consumidor, tendo em vista esse ser a parte mais vulnerável da relação.
Nesse sentido, dentre as disposições que resguardam os direitos consumeristas, há o artigo 32 do referido código que prevê:
Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.
Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei.
Tal artigo tem a missão de prevenir que após a aquisição de um bem o consumidor não encontre peças para a reparação e tenha que adquirir um novo produto.
A leitura do dispositivo legal deixa questionamentos, haja vista que o termo "período razoável de tempo" é conceito aberto e demanda delimitação temporal.
Assim, buscou-se no decreto
2.181 de 20 de março de 1997, que dispõe sobre a organização nacional do de Defesa do Consumidor, a fixação deste tempo razoável, nos moldes do art. 13, inciso XXI:
Art. 13. Serão consideradas, ainda, práticas infrativas, na forma dos dispositivos da Lei nº 8.078, de 1990:
(...)
XXI - deixar de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição, enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto, e, caso cessadas, de manter a oferta de componentes e peças de reposição por período razoável de tempo, nunca inferior à vida útil do produto ou serviço.
Ensina-nos Tartuce e Neves1:
Em complemento ao preceito geral a respeito do conteúdo das informações previamente prestadas, o art. 32 da Lei 8.078/1990 preceitua que os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto. Se cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei. Esse tempo razoável, por óbvio, deve levar em conta a vida útil média do produto, bem como a sua difusão no mercado de consumo. A norma visa justamente a fazer cumprir a oferta anterior, quando da aquisição originária do produto, mantendo a sua integralidade.
Sabe-se, então, que as peças de reposição devem ser mantidas por período razoável de tempo. Cessada sua produção, este período não poderá ser inferior a vida útil do aparelho.
A vida útil2 é uma estimativa de quanto tempo pode ser usado sem perder suas características essenciais.
Cumpre ressaltar que o período razoável de tempo ainda não foi devidamente estabelecido em lei, sendo certo que, em 2003, tramitou perante a Câmara dos Deputados o projeto de lei
1.437 que tinha a intenção de estabelecer o prazo de 15 (quinze) anos no parágrafo único do art. 32 do CDC.
Ocorre que o projeto de lei foi rejeitado após inúmeras criticas em virtude do prazo estipulado de 15 anos e, nessas circunstâncias, é preciso analisar o quesito temporal que lastreia a presente questão colocada ao crivo do Poder Judiciário.
É unânime o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no sentido de que há responsabilidade do fabricante quando não assegurar a oferta de componentes e peça de reposição, senão vejamos:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. VÍCIO OCULTO. DEMORA NO CONSERTO DE VEÍCULO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANO MORAL. SOLIDARIEDADE ENTRE FABRICANTE E CONCESSIONÁRIA. APELO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
Nos termos do que dispõe o artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor responde solidariamente com o fabricante pelos defeitos relativos ao fornecimento de produtos ou serviços, tais como os vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor.
Descumprindo a fabricante o dever legal que lhe é imposto - assegurar a oferta de componentes e peças de reposição (art. 32, do CDC) - e a concessionária, que não prestou adequadamente o serviço de assistência técnica, mister reconhecer sua responsabilidade.
Incumbe ao consumidor, em caso de responsabilidade solidária, escolher se ajuizará a ação contra a fabricante e a concessionária, ou apenas contra uma delas. (TJMG - Apelação Cível 1.0334.10.001618-0/002, relator(a): des.(a) José Marcos Vieira , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29.11.17, publicação da súmula em 11.12.17) (grifo nosso)
Não é outro o entendimento nos demais tribunais:
APELAÇÕES - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C.C.
INDENIZATÓRIA - Compra e venda de bem móvel (televisão) - Vício do produto - Sentença de parcial procedência - Insurgência das requeridas - Relação de consumo - Não realização de reparos que restou incontroversa - Não saneamento do vício e não fornecimento das peças necessárias para tanto - Responsabilidade solidária das requeridas pelos danos suportados pelo consumidor - Rés que integram a cadeia de fornecimento do bem - DANOS MORAIS - Configuração - Autor que ficou impossibilitado de utilizar o bem em razão da não restituição do aparelho devidamente consertado - "QUANTUM" INDENIZATÓRIO - Redução - Valor razoável e adequado à compensação dos danos suportados de forma justa e moderada, atendendo às particularidades do caso concreto sem que se possa falar em enriquecimento ilícito da parte - Recursos parcialmente providos. Processo nº 1046526- 14.2014.8.26.0100, Relator(a): Hugo Crepaldi, Comarca: São Paulo, Órgão julgador: 25ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 04/04/2019, Data de publicação: 04/04/2019.
AUSÊNCIA DE PEÇA DE REPOSIÇÃO. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. OBRIGAÇÃO DO FABRICANTE EM MANTER PEÇAS DE REPOSIÇÃO. SENTENÇA MANTIDA.
Não há falar em decadência quando a reclamação do consumidor não diz respeito a vicio do produto. É obrigação do fabricante manter, por prazo razoável, a oferta de peças de reposição. Inteligência do art. 32 do CDC . Inexistência de peças apenas quatro anos após a aquisição do bem que se revela abusiva, pois um refrigerador certamente não é um bem descartável feito para durar tão pouco tempo. Obrigação de substituição por outro refrigerador mantida, considerando que sequer alegada em contestação a existência da peça reclamada na inicial, bem como a possibilidade de conserto do bem. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Recurso Cível Nº 71004764130, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em 22.04.14) (grifo nosso)
Em caso concreto, após um cliente adquirir uma televisão de ultima geração em 2014, mas em 2019 obter laudo da assistência técnica autorizada declarando a impossibilidade do conserto em virtude da inexistência da peça, a sentença3 foi favorável determinando a disponibilização da peça sob pena de fornecer outro aparelho similar ou superior ao produto viciado.
Na sentença proferida pela 1ª Unidade Jurisdicional Cível da Comarca de Varginha/MG, o M.M. juiz entendeu que a peça não deve ser fornecida apenas dentro do prazo de garantia e que se o fornecedor deixou de fabricar a referida peça tem o dever de substituir o bem:
"(...) Caso prevalecesse a tese da parte ré, terminado o exíguo prazo de garantia, que costuma ser de 1 ano, o consumidor estaria desamparado, porque não teria direito ao conserto do produto pelo fabricante e estaria impossibilitado de providenciar o reparo, por sua conta, no caso de cessação da fabricante das peças.
Compulsando os autos, verifica-se que a televisão foi adquirida em 2014 e autora pleiteou o reparo em 2019. Ora, se o aparelho tem vida útil de pelo menos 10 anos, o fabricante não pode pretender que o consumidor seja induzido a adquirir outro novo.
Destarte, se a parte ré deixou de fabricar as peças necessárias ao conserto do aparelho, deve arcar com o custo inerente ao dever jurídico de fabricar produtos com adequado padrão de qualidade, durabilidade e desempenho, ou seja, deve providenciar a substituição da televisão por outra nova. (...)"
No caso em questão, em virtude da inexistência da peça para o reparo do aparelho, fato esse que inclusive foi confessado em sede de contestação, o fornecedor entregou um novo produto ao autor.
Sendo assim, conclui-se que quando da ausência de peças e componentes do produto dentro da vida útil do bem, pode ser o fornecedor obrigado a substituí-lo ou indenizar, de modo inibir a compra de outro produto por impossibilidade de reparo, à custa do consumidor.
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1TARTUCE, Flávio. ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel A. Manual de Direito do Consumidor Direito Material e Processual, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
2Definição extraída do sitio eletrônico disponível em:
Clique aqui. Acessado em: 06.05.20 às 17:55
3Autos 5008106-75.2019.8.13.0707, sentença publicada em 04.03.20.
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*Gustavo Oliveira Chalfun advogado sócio diretor de Chalfun Advogados Associados.
*Cinthia da Silva Pereira advogada associada de Chalfun Advogados Associados.