Certo é que constitui premissa histórica em nosso sistema judiciário a inegociabilidade dos direitos indisponíveis. Não há como se afastar que referida proposição tenha como pano de fundo uma política protecionista, que busca engessar qualquer poder de negociação desta categoria de direitos por parte dos seus titulares, entendendo ser esta a melhor forma de assegurá-los.
No entanto, diante dos avanços sociais e dos contornos das próprias relações interpessoais, busca-se demonstrar neste ensaio que o olhar categórico acerca da dita indisponibilidade acaba por enevoar a questão da disponibilidade dos direitos fundamentais face à liberdade e autonomia das vontades.
Constata-se que em outros sistemas jurídicos já se consagra a possibilidade de negociações relativas aos direitos indisponíveis. Lado outro, na Justiça brasileira ainda não se encontra posicionamento pacificado acerca do tema, mesmo diante da nova realidade existente, que nos apresenta uma conjunção entre os procedimentos de jurisdição e os mecanismos extrajudiciais, com vistas a buscar uma adequada resolução dos conflitos e proteção dos direitos.
Neste sentir, analisando-se a legislação vigente, importante observar que através de diversos dispositivos do
CPC resta nítido o estímulo à conciliação, sendo possível depreender que o Estado-juiz: (i) deve tentar buscar a solução consensual de conflitos (CPC/2015, art. 3º, § 2º); (ii) deve estimular a solução consensual de conflitos, inclusive no curso de processo judicial (CPC/2015, art. 3º, § 3º); (iii) deve cooperar para que se obtenha decisão de mérito justa, efetiva e em tempo razoável; (iv) deve, a qualquer tempo, promover a autocomposição (CPC/2015, art. 139, inciso V).
Certo é que doutrinadores contemporâneos têm se distanciado da noção rígida de impossibilidade de transação em relação aos direitos assim categorizados, face evidente evolução legislativa e jurisprudencial, sobretudo no que tange aos meios alternativos de resolução de conflitos.
Importante mencionar o que a Lei de Mediação (
lei 13.140, de 26 de junho de 2015), assim dispõe:
Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação.
§ 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.
§ 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público
Ora, é inegável que o atual cenário jurídico está permeado de casos de solução alternativa de conflitos, devendo ser a desjudicialização dos conflitos tendência, inclusive, a ser observada futuramente, com mais enfoque, para o "novo mundo", pós pandemia.
Conforme visto no artigo supra citado, através da solução alternativa de conflitos admite-se sobre outros direitos classificados como indisponíveis.
Há decisões não tão recentes, inclusive, em que a indisponibilidade dos direitos parece ter sido relativizada, tendo em vista a necessidade premente de pacificação social.
No ano de 2006 o STJ reconheceu como válida transação que versava acerca de direitos difusos, mesmo diante da discordância expressa do Ministério Público, sendo que na oportunidade, a Ministra Eliana Calmon afirmou que "a melhor composição a efetivada e não aquela que não virá nunca, ou demorará mais de dez anos, caso seja anulada a sentença, para então começar-se tudo novamente"1.
Ada Pellegrini Grinover, ao comentar acerca do antigo sobre o antigo
PL 7.169/2014 em sua obra "Conciliação e mediação endoprocessuais na legislação projetada"
2, afirma de modo indubitável, que as condições de cumprimento de obrigações relacionadas a direitos indisponíveis podem ser transacionadas sem que isso signifique a transação do próprio direito:
Ora, é de conhecimento geral que os conflitos de família são os que mais se adequam e mais frequentemente são submetidos à solução conciliatória. A ideia aparentemente encampada pelo PL sobre a indisponibilidade de certos direitos é equivocada e ultrapassada, pois, mesmo em relação a certos direitos indisponíveis, existe disponibilidade a respeito da modalidade, forma, prazos e valores no cumprimento de obrigações, passíveis de uma construção conjunta, e que são, assim, perfeitamente transacionáveis (como, v.g., guarda dos filhos) e em que pode haver reconhecimento da pretensão (por exemplo, investigação de paternidade).
Partindo desse argumento, eventual caracterização da indisponibilidade do direito não significa necessariamente impossibilidade de autocomposição, entendida como a possibilidade de voluntariedade relacionada a algum dos elementos de uma relação jurídica.
O enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis foi categórico nesse sentido, ao entender que "a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual".
Ora, corroborando todo este entendimento de que a transação não se opera quanto aos direitos considerados como indisponíveis em si, mas quanto às situações a eles conexas, cabe uma análise e reflexão, nos casos em concreto, de forma a se evidenciar, de fato, a impossibilidade de se transacionar acerca de eventual direito-dever tido como indisponível em relação, por exemplo à sua restrição, afastamento e/ou seu não reconhecimento, tornando-se possível e admissível, no entanto a possibilidade de negociar-se, por exemplo, em relação às condições de sua efetivação.
Nesta senda, pode-se dizer que a possibilidade de transação retira o caráter indisponível de um direito. Tal indisponibilidade prevalecerá, ainda que de forma relativizada, conquanto ainda sim o titular do direito não exerce em sua plenitude o poder de disposição, devendo observar os requisitos impostos pelo Estado.
Conclui-se, permissa vênia, que nem a indisponibilidade do direito e nem mesmo a indisponibilidade da pretensão da tutela judicial são hábeis para afastar a possibilidade de celebração do negócio jurídico processual e/ou atos que levem à autocomposição.
Desse modo, sob o enfoque ainda mais "moderado" de que tão somente as obrigações decorrentes de direitos considerados como indisponíveis são transacionáveis, tem-se um parâmetro cabível para a compreensão do art. 3º da
lei 13.140/2015, não podendo tal situação ignorada nos âmbitos dos Tribunais, e, sobretudo, na vida cotidiana dos advogados, que buscam transpor para "o papel" a vontade mais íntima, real e livre de seus assistidos que, muita das vezes encontra barreiras para ser efetivada.
É sob este aspecto da possibilidade cada vez mais visível de apuração da intenção dos titulares dos direitos indisponíveis em exercê-los ou negociá-los, que passa-se a exigir do Estado-Juiz posturas mais criativas e humanizadas, bem como contribuições doutrinárias sobre o tema, sobretudo, diante das lacunas legais ainda existentes.
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1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 299.400 - RJ. Segunda Turma. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Recorridos: Município de Volta Redonda, Banco Bamerindus do Brasil S/A., Companhia Siderúrgica Nacional. Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins. Relatora para acórdão: Ministra Eliana Calmon. Brasília, 1º de junho de 2006.)
2 GRINOVER, Ada Pellegrini. Conciliação e mediação endoprocessuais na legislação projetada. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 13, n. 91, p. 71-92, set. /out. 2014. p.13-14
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*Thatiana Biavati Silva e Marques é advogada, sócia da banca Chalfun Advogados Associados, atualmente é presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões da 20ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil/MG; pós-graduada em Direito de Família e Sucessões; psicanalista em formação pela Associação Mineira de Psicanalise Contemporânea.